quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Os rios de Salvador pedem socorro


Carta em defesa dos rios de Salvador, Bahia
No momento, nos é vendida a ideia de que uma Salvador melhor, uma cidade do futuro, com infraestrutura eficiente e adequada está por ser construída, num curtíssimo espaço de tempo, visando o atendimento aos requisitos exigidos às cidades-sedes dos jogos da Copa do Mundo de Futebol de 2014.

Porém, essa estratégia falaciosa não pode sanar o caos urbano instalado em nossa cidade, fruto de um déficit já histórico de planejamento e de investimentos em questões-chaves ao desenvolvimento urbano, e, ao qual se somam a pobreza e a marginalidade de imensa parcela dos soteropolitanos.

Salvador teve um período de planejamento, no qual as avenidas de fundo de vale foram concebidas, visando estruturar o sistema de deslocamento da população. Estas são ainda hoje as principais vias nas quais escoam (lentamente) carros, ônibus, caminhões e, atualmente, uma grande quantidade de motocicletas e bem poucas bicicletas.

Tais avenidas, assim como outros aspectos do tipo de crescimento urbano adotado em Salvador, causaram impactos ao escoamento dos rios, que outrora proporcionaram não só a fundação da cidade, como nela desempenhavam inúmeras funções urbanas.

Atualmente, os rios, constrangidos em suas larguras de cheia, têm ainda que dar conta de enormes volumes de águas que não tem mais como penetrar nos solos em função do rápido desaparecimento das áreas livres, especialmente as áreas verdes. E esses volumes, cada vez mais, incluem esgotos, sedimentos e lixo. Dessas relações, entre os nossos rios e a ocupação intensa e inadequada dos solos da cidade os problemas emergem: alagamentos, poluição, riscos de diversas ordens, incluindo à saúde pública, dentre outros.

Grandes cidades mundo a fora, incluindo algumas brasileiras, hoje buscam reverter o caos resultante dessa má conduta, insustentável sob o ponto de vista ambiental, social e econômico. Soluções ambientalmente  mais corretas passam por gerenciar integradamente a infraestrutura urbana, iniciando-se pela definição da ocupação do espaço com preservação de funções naturais como a infiltração e a rede natural de escoamento (os rios!), e a redução e controle das fontes de poluição.

Como alguns exemplos, nos EUA este tipo de desenvolvimento tem sido adotado e denominado Low Impact Development, ou Desenvolvimento de Baixo Impacto. Na Austrália tem sido denominado Water Sensitive Urban Design, algo como, Desenho Urbano Associado à Água. Na Europa um projeto denominado SWITCH (Sustainable Water Management in Cities of the Future) reflete essa tendência de mudança de rumo no trato das águas no meio urbano.

A remoção de represas obsoletas, a retirada do revestimento do fundo e das margens dos rios canalizados, o reordenamento das faixas laterais aos rios, com o replantio de vegetação para a criação de espaços livres para lazer, mas também para que o rio encha ocasionalmente, têm sido algumas das iniciativas visando a ‘renaturalização’ de áreas das cidades.

Essas ações visam a melhoria da qualidade paisagística e ambiental urbana, a restauração da função social dos rios e a melhoria da drenagem de águas das chuvas, além de outros benefícios.
Têm sido emblemáticas as iniciativas para despoluição e reintegração às cidades dos rios Tâmisa à Londres, Sena à Paris, Cheonggyecheon à Seul, dentre outros, e no Brasil os casos dos rios das Velhas à Belo Horizonte, rio Barigui à Curitiba, além de ações iniciais para melhoria do Tietê em São Paulo.

Salvador tem caminhado na contramão dessa tendência. Sob a égide da ganância imobiliária tem-se avançado desenfreadamente sobre áreas remanescentes de vegetação, aterrado lagoas e cursos d’água, na pressa em aproveitar o momento econômico de uma população de classe média que se endivida avidamente, e sem os limites de um efetivo e consequente ordenamento e controle do uso do solo urbano por parte do Poder Público.

Nesse contexto insustentável, a cobertura de rios em Salvador se tornou regra. Parece ser a única solução existente para esgotos nas águas, para os problemas de captação e destino dos esgotos e dos resíduos sólidos (lixo), e finalmente para o caso da presença de odores e de mosquitos. 


Esconder esses problemas sob tampões de concreto é a forma mais simples encontrada pela Administração Municipal, subsidiada por gordos recursos públicos federais (Ministério da Integração) e com a conivência do Conselho Municipal de Meio Ambiente.

A cobertura do Rio dos Seixos, na Avenida Centenário, foi o início dessa nova fase da tecnologia anacrônica adotada em Salvador, a um custo de quase 30 milhões de reais. A seguir, no Imbuí, a um custo de 57 milhões de reais, um parque linear árido e cheio de edificações surge, não ao longo do rio, como vem ocorrendo em tantos lugares, mas sobre o rio das Pedras.

Intervenções como essa denunciam a forma fragmentada e pontual de atuar sobre os rios, que, paradoxalmente, como corredores de água e matéria orgânica, são verdadeiros símbolos de continuidade e interdependência entre os seus diversos segmentos e trechos.

Neste momento, obras avançam para esconder o trecho do Rio Lucaia, confinado entre as pistas da Avenida Vasco da Gama, a um custo previsto de 49,84 milhões de reais! E outras obras similares estão anunciadas, enterrando nossos rios, e ‘rios’ de dinheiro público. Ressalte-se que no linguajar dos atuais administradores do Município, não temos ‘rios’, mas apenas ‘canais de esgoto’. Uma enorme miopia!

A falta de investimentos em infraestrutura viária, a entrega do solo urbano ao capital imobiliário, que não distingue elementos importantes da paisagem, tem gerado também enormes déficits no sistema de mobilidade e de espaços públicos em Salvador. Assim, esses aspectos da cidade, fundamentais para a qualidade de vida urbana, e que deveriam ser prioritários no processo de desenvolvimento urbano, servem agora também como argumentos para a destruição dos rios.

Por fim, é importante ressaltar, que alternativas técnicas para os problemas da cidade existem. A ‘solução única’ imposta pelos atuais administradores públicos segue uma lógica cega, de interesses econômicos (e políticos) e nega a participação social e a ação para um futuro mais responsável e com qualidade ambiental para Salvador. Temos a certeza que não há uma única solução para nossos problemas, e que estas também podem ser mais sustentáveis e inteligentes, e principalmente, fruto de discussões e aprofundamentos.

Salvador, 21 de outubro de 2011

Assinam esta carta:

Aruane Garzedin (Profa. Dra. da UFBA)
Catherine Prost (Profa. Dra. da UFBA)
Grupo Ambientalista da Bahia (GAMBÁ)
Lafayette Dantas da Luz (Prof. Dr. da UFBA)
Luiz Roberto Santos Moraes (Prof. Titular da UFBA)
Marco Antônio Tomasoni (Prof. Dr. da UFBA)
Maria Teresa Chenaud Sá de Oliveira (Engenheira Civil, MSc)
Patrícia Campos Borja (Profa. Dra. da UFBA)
Renato Paes Pegas da Cunha (Engo. Mecânico, Ambientalista)
Severino Soares Agra Filho (Prof. Dr. da UFBA)
Sindicato de Trabalhadores em Água, Esgoto e Meio Ambiente do Estado da Bahia (SINDAE)
Antonio Emilson A. de Carvalho - ASSMPJ
Zoraide Vilasboas (Associação Movimento Paulo Jackson - Ética, Justiça,Cidadania)

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