As águas vão rolar...
Encontros vão discutir papel dos Comitês de Bacias e uma maior participação da sociedade na política de recursos hídricos do País
por
Raimundo Boges
(O Imparcial - 09/09/2011)
A questão da água começa a ocupar um espaço importante no Maranhão. Neste
sábado e domingo, em Açailândia, acontece a 11ª. Romaria da Terra e da Água,
organizada pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil(CNBB), que tem como
lema Terra, Água, Direitos: Resistiir, Defender e Construir, e como um dos
principais objetivos o enfrentamento à ilusão dos grandes projetos, que vem
causando muitos prejuízos sociais e ambientais no Estado. O tema da água
volta à pauta em outubro quando dois eventos de âmbito nacional trazem para
São Luís a discussão sobre o papel dos Comitês de Bacias Hidrográficas e a
participação da sociedade civil nas decisões que afetam o futuro das águas no
Brasil.
Um destes eventos, que será realizado entre os dias 25 a 27 de outubro, no
Basa Clube ( Av. dos Holandeses) comemora os 10 anos do Fórum Nacional da
Sociedade Civil nos Comitês de Bacias Hidrográficas ( FONASC.CBH), que vem
desenvolvendo um importante papel no sentido de alertar contra os descaminhos
da política nacional de recursos hídricos e de mobilizar e capacitar
representantes da sociedade civil para uma atuação mais qualificada junto aos
Comitês de Bacias. O coordenador nacional do FONASCH, o sociólogo João
Clímaco, revela, nesta entrevista, que apesar de ser um dos Estados com a
maior disponibilidade de recursos hídricos, o Maranhão é um dos mais atrasados
em relação a aplicação da legislação e reclama da forma equivocada como a
questão da água vem sendo tratada, como um bem econômico e não como um direito
básico, o que vem gerando, entre outras conseqüências, o aumento dos desastres
hídricos. Confira, abaixo, trechos da entrevista.
NO ALTAR DOS COMITÊS
"Historicamente vendeu-se a idéia de que os Comitês de Bacias seriam o lócus
privilegiado onde se resolveria todas as contradições sociais e as diferenças
de classe, de credo e de religião e todo mundo seria convergido para o
parlamento das águas...Mas isso foi uma ilusão . Na sociedade capitalista o
que temos visto é que criaram um formato institucional onde os movimentos
sociais,as organizações de direito difusos, os cidadãos que são maioria,
são representados por duas, três ou quatro entidades, no máximo, dentro
destes Comitês...O que acontece é que isso não propicia a negociação e estamos
ali praticamente para referendar decisões de outros campos políticos,
sobretudo os interesses encastelados no Estado, que muitas vezes representa o
setor econômico.
Precisamos mudar isso porque não podemos ficar numa lógica onde as pessoas não
negociam sobre a água como espaço do crescimento da política e então
colocam-nos em um altar figurativo onde as decisões não são as demandas da
sociedade, de quem está sofrendo na carne falta de água, poluição, falta de
saneamento e a degradação das bacias e seus rios..
VISÃO DO SISTEMA
São 10 anos em que o FONASC está batendo na tecla de que esse sistema de
gestão, do jeito que está, vem sendo responsável pela destruição de nossos
rios na medida que prioriza uma visão economicista, burocrática e
tecnocrática, que não integra e não incorpora os preceitos da visão da água
como recurso ambiental, como bem fundamental para a sociedade. Como estamos
diretamente envolvidos com essas demandas da sociedade, vemos os espaços
políticos como espaços de conquista de direitos, de até possibilitar, através
da água, a reforma para evolução das relações políticas, a modernização do
Estado.
Todos os estudos científicos e técnicos mostram que teremos um stress hídrico
no Maranhão a médio prazo, um Estado com grande disponibilidade de recursos,
mas que está implementando um modelo de desenvolvimento sem considerar que a
água é fundamental nos seus aspectos de uso múltiplo. Por isso, estamos
fazendo um esforço para motivar esse clima de pedagogia política, de
mobilização da sociedade para que ela ocupe seu espaço de maneira competente
e exija que o Estado regule o uso da água garantindo o seu uso múltiplo, de
forma organizada como prevê a lei.
QUEM PAGA
Temos visto que é impossível fazer cidadania com as águas ou trabalhar a
dimensão da política e da participação cidadã com as águas, se você as engana.
.Estamos observando que os políticos não estão tendo essa visão e não
priorizam iniciativas contra os desastres hídricos que se evidenciam como se
a água estivesse reagindo como vida à dimensão política pequena que se está
tendo em relação a ela...E quem está pagando isso são as populações mais
carentes, as periferias, que na verdade estão pagando o preço pelo mau uso e
pela má gestão da água...Quando você adota uma política que na sua essência
deveria consertar isso e faz exatamente o contrário, está fazendo uma
deslegitimização do processo da construção cidadã em função de interesse
menores, de interesses econômicos localizados. Essa dimensão holística
integradora da água e da Bacia, que foi contemplada na lei, não está sendo
respeitada. Essas contradições se evidenciam na medida em que a gente vai
atuando nos Comitês e vendo esta atitude do político tradicional e seus
subordinados , que ainda não entenderam a dimensão da política da água como
fator integrador de convergência, mas sim como meio de desagregar, de criar
conflitos . Nosso papel é mostrar essa dimensão e fazer com que haja uma
agregação de valores novos que a água pressupõe para poder se mexer com
ela...O que a gente vê é exatamente o contrário.
DISPUTA
Há uma lógica da infinitude dos recursos naturais, que permeia o pensamento
das pessoas, de todas as classes sociais. Em qualquer país que existe carência
de recursos, você sente que a população já tem um olhar mais responsável,
enquanto no Brasil, como somos tão ricos, a idéia é que se pode fazer o que se
quiser, até sustentar essa corrupção generalizada que o País tem..Somos tão
ricos , porque dá também para todo mundo fazer a má política, se dar bem, e o
povo continuar aí vendo a sua água se deteriorando na medida que é
interessante para alguns sua escassez para o mercado. ...Mas isso pode está
mudando... Como? ...Já estamos vivendo conflitos localizados onde há uma
disputa pelo uso da água, projetos e expansão de grandes conglomerados que
estão disputando a água com as populações carentes...As pessoas continuam
agindo como se tivéssemos toda água do mundo e ela é finita...E não adianta
ter água se não se pode beber...Existem estados da federação em que o stress
hídrico não é por falta de água, mas porque ela está poluída ou foi apropriada
por alguma atividade de maneira equivocada ,o que exige que um sistema de
regulação seja implantado dentro dos princípios previstos em lei.
CHAPA BRANCA
O que se vê é uma ascensão do poder burocrático, do poder tecnocrático, dos
grupos de interesse, das corporações, que se autopromovem, ainda mais quando o
Estado não tem uma postura estratégica e afirmada em relação a água, aí se
cria um ambiente de poder paralelo que tenta esvaziar a visão colegiada e a
tomada de decisão compartilhada.
Então as outorgas que são emitidas para seu uso pelo Estado,deveriam ser
questionadas pelos Comitês, que muitas vezes já se tornaram chapa branca por
conta de uma estrutura que tenta isolar as demandas da sociedade através de
pouquíssima representação neles contidas. Então há uma tendência, por
motivações econômicas e políticas, de artificializar a tomada de decisão sobe
a água para que se mantenha uma aparência de que as coisas estão acontecendo
de maneira politicamente aceitável, quando na verdade não estão. Em treze anos
de Política Nacional de Recursos Hídricos, são poucos os casos no Brasil que
essa política está tendo efeito na qualidade e quantidade de água. E isso não
é por aviso do nosso segmento. O Estado está inapropriado para a dimensão
conceitual e até revolucionária da água como um meio para se unir as pessoas e
modernizar as instituições . A água na verdade é um bem espiritual, econômico,
social, poético, um alimento humano que serviria para unir as pessoas...Será
se vamos esperar acontecer mais tragédias para conseguir nos unir pelo que ela
nos ensina?
O PAPEL DA SOCIEDADE
O FONASCH surgiu dentro de um Encontro de Comitês , quando identificamos que
o Comitê por si só é uma abstração, um arranjo institucional que não iria
resolver o problema se não tivesse uma efetiva participação social e
abrangesse as demandas da sociedade. Então criamos o Fórum formados por
pessoas e cidadãos que representa a concretude da dimensão sociopolítica da
água . A sociedade está sendo o tempo todo instada a denunciar, a mostrar que
os Comitês nestes 10 anos estão ficando enfraquecidos por falta de uma decisão
política maior dando margem ao protagonismo de grupos setoriais corporativos
que se apropiaram da política de recursos hídricos. E temos feito o nosso
trabalho de capacitar, articular, mobilizar cidadãos para que atuem nos
Comitês de maneira politicamente mais incisiva, mais cidadã frente a essa
realidade . Não podemos pensar que nenhuma instância ou norma em si já vai
resolver o problema, mas por sua vez não podemos deixar que nos seus aspectos
positivos ela seja manipulada para dar margem ao uso econômico de um bem que
não é apenas econômico, mas é direito básico. O FONASC começou como um grito
de rebeldia dentro de um encontro de comitês, no início éramos tidos como
incomodo a essa idéia falsa de um parlamento das águas, mas todas as nossas
premissas infelizmente, estão sendo evidenciadas .... Nosso papel tem sido
mostrar para a sociedade brasileira que água, política, cidadania andam muito
juntos e que se não tomarmos cuidado vamos ver o pobre não ter direito para
tomar sua própria água e os rios desviados para atividades sem respeitar seus
usos múltiplos.
CELEBRAÇÃO
Estamos celebrando estes 10 anos com o pouco que se conseguiu, mas sempre com
a fé e esperança de que o dia a dia da luta é que nos realimenta para mostrar
que estamos no caminho certo e cumprido uma função social imensurável, uma
missão social muita vezes formada por voluntários. Nós não somos operadores da
política para o Estado . O FONASC é formado por pessoas simples que vão se
juntando, trocando informação tentando interferir na tomada de decisão sobre
as águas. Apesar de todo nosso esforço, aqui no Maranhão temos enfrentado
desafios por conta da atitude tradicional, excludente e discriminadora do
Estado que deveria ser um lugar que deveria ser o espaço privilegiado da
expressão da cidadania, mas que na verdade, é um espaço onde as elites
políticas tradicionais demonstram que tem medo da sociedade, e daí fazem
desse espaço, local onde se desorganiza a sociedade para se manter equívocos e
contradições, que mais cedo ou mais tarde a água não perdoará, ela vem e
mostra o que está errado".